quarta-feira, 15 de maio de 2013

Um Vento Sudoeste





Havia uma brisa de início bem suave... O sol derramava seus últimos estertores de calor sobre mim, mas ainda iluminava o mar até o mais longe onde a visão podia alcançar. E bem baixinho, quase sumindo pelos ruídos do mar, havia uma música que me envolvia toda, me levando a um tempo fora de todo o tempo. Um tempo em que eu era outra pessoa. A música tem o poder de nos reportar, até mesmo ao que nunca existiu... Ou que só se concretizou em nossa imaginação. Mas lá estava eu! E esse lugar, talvez dentro de mim, bem fundo, fundo como as profundezas do oceano mais azul do globo. Não sei se esse lugar de fato existe... Profundidades costumam ser escuras... E, no entanto eu me sentia flutuando em uma lagoa tão plenamente azul, clara  e límpida. Era linda!Era o meu interior. Já fui assim. Um dia ou nunca antes. Mas ali, naquele momento, naquele lugar, assim eu me sentia e assim eu estava. Eu podia.
Inesperadamente acordei desse devaneio com respingos fortes sobre minha face. O sol já havia partido de todo. O vento não era mais uma brisa, tinha ímpetos de ventania, prenuncio de tempestade. A música era outra. Um samba agitado, ali intrometido por um capricho da imperfeição que rotula tudo o que pode ou não: nada é perfeito. O vento era o sudoeste, aquele vento que desfaz as brisas e constrói impressões de tempestade, desfazendo planos, espantando, escorraçando as boas intenções de um passeio em paz. O manto escuro da noite já envolvia tudo e não conseguia ver estrelas, nem ouvi-las como Bilac. Foi quando pensei em estrelas que tive medo de estar perdida. Estava sozinha, com quase nenhuma roupa e sem os óculos que insistiam em sumir por aí.
Meu barco era um bote, resistente, mas somente um bote e não havia nele a menor estrutura para que eu tivesse ido tanto, que esqueci de voltar.Estava longe da costa, o mar agitado, o céu  escuro, sem sinais de ajuda.Eu com frio e o estômago  começava a sentir fome. Não era eu, apenas ele. Porque eu insistia em uma mesura única,  acreditar estar no controle. Mas era fato, não estava. Enquanto tentava pensar, o sudoeste virou tempestade e me percebi jogada de um lado para o outro daquelas quinas infláveis. Havia muita água dentro do bote e eu não conseguia me segurar em nada. Tentando me equilibrar, fui à extremidade do bote e puxei a corda para dar partida no motor. Estar em movimento me faria sentir melhor do que continuar parada esperando a certa morte por vir. Após três desesperadas tentativas, consegui, mas apenas para piorar tanto as coisas: bati logo em algumas pedras e o bote furou...
Por um tempo em que não saberia dizer o quanto durou, estive desacordada. Ao abrir os olhos, o sol já ia alto. Havia uma ave meio depenada bicando a minha barriga, creio ter sido por isso que acordei. Reparando a situação a minha volta, percebi que o bote não estava ali, nem vestígios dele eu vi. Eu estava em uma pedra bem grande, como uma ilha no meio do nada. Meus lábios ressecados já principiavam a rachar. Minha boca extremamente seca. Esses sintomas indicavam que estava por horas adormecida sob o sol. O mar estava calmo e não havia viva alma por perto. Notei as roupas sujas de sangue, procurei por algum ponto de dor. Minha cabeça estava dolorida, o cabelo embolado ao sangue já seco e grosso. Um grande corte, uma enorme dor de cabeça. Comecei a lamentar a vida: quando tudo parece estar ruim, eis que vem algo novo e fica pior ainda.
Mas o meu cínico otimismo não seria estragado por tão pouco e estava absolutamente convencida que iria logo, logo aparecer alguém e me tiraria daquela montanha quase que totalmente submersa no mar. Meu corpo estava muito dolorido e me sentia meio zonza, não percebendo se de fome ou da pancada e corte na cabeça. Sentei-me com as mãos envolvendo os joelhos, pensando estar fazendo a única coisa que resolveria parte da situação. Iria tentar poupar forças e relaxar o máximo que desse. Após um bocado de horas, avistei algumas barbatanas rodeando a pedra e logo entendi que eram tubarões. O sol sobre a minha cabeça já me levava à sensação de delírio. Pensei em molhar a saída de praia e colocar sobre a cabeça e ombros que ardiam imensamente, mas a presença dos terríveis peixes quase me paralisava. E fiquei imóvel no mais alto da pedra. Um pouco mais adiante nas horas, começou novamente a escurecer e meu medo virou pranto e já estava em pânico, chorava , gritava , xingava e brigava com Deus: não era justo!Eu não queria morrer, não assim, longe de todos, sem ninguém saber onde estava.
Comecei a tremer de frio e febre. Agora o delírio invadia todo o meu corpo em dimensões inenarráveis. E eu era só uma princesa presa na torre, gritando desesperadamente por socorro. Mas ninguém aparecia e lamentei que nem mesmo nos delírios, os príncipes deixassem de ignorar as princesas. Será que só havia sapos no mundo? Eu chorava, sofria e me arrependia da estupidez feita. O sono da febre trouxe pesadelos e acordei ouvindo vozes que na verdade nunca estiveram por lá.Mais tarde vozes alegres de crianças correndo, brincando, vozes em forma de preces, que começaram baixinho e depois foram aumentando o som como uma sinfonia tocando o bolero de Ravel. Quando acordei, não conseguia falar, gritar. Estava muda. Minha voz foi embora de mim. Voltei a dormir. Com o dia veio o sol novamente e eu nem aguentei abrir os olhos. Estava morrendo. Não conseguia falar nada, não mexia nem um dedo e senti dificuldades para respirar. Creio ter desmaiado.
Acordei não sei quando e nem onde. Mas estava me sentindo muito confortável. Mãos ásperas acariciavam meus cabelos. Sentia um cheiro de café e tudo ali era muito fresco, entrava uma brisa leve vinda de várias direções e a curiosidade de saber como era o céu, me fez abrir os olhos. Não era o céu, ao menos não aquele que inicialmente pensei. Mas era o céu, sem dúvida alguma. As mãos eram de uma senhora muito meiga e carinhosa. Estava na casa dela em uma vila de pescadores. Estava salva. E já estava ali fazia três dias. Como era bom estar viva. Antes da febre e do delírio, lembro que pedi mais uma chance e nem fora para continuar a minha busca incessante por realizações pessoais que sempre sonhei, mas foi para dizer para algumas pessoas o quanto eu as amava e lamentava a minha estupidez em tentar afastá-las da minha vida. Havia acontecido!E agora eu poderia voltar para casa e sorrir sem fingimentos, sem o sorriso que esperavam que eu desse. Podia ser eu mesma sem culpas, porque agora, estava realmente querendo sorrir, querendo viver. Já havia feito tanta gente infeliz com o meu descaso por mim mesma. Principalmente aqueles que mais me amavam.
Voltei para casa, para o trabalho, para as pessoas que não me suportavam e também para aquelas que me amavam. Voltei também para aquelas pessoas que precisam de mim e das quais eu nunca mais pensaria me afastar. Faria tudo para amá-las como mereciam. As outras , as que não se importavam, tentaria ao menos provar, que eu estava disposta a abrir espaço em minha vida. Quem sabe seria um começo de redescobertas daqueles relacionamentos que um dia tinham sido tão bons. Então eu voltei, mas do que para todos os outros, voltei para mim. Peguei a vida de volta.
Quando chegamos tão perto da morte que só a pré-morte nos pode devolver a vida, nos deparamos com o insondável de nós mesmos. Nos deparamos com  o que mais odiamos em nós e paramos de dar desculpas do porque não  fazemos o que precisa ser feito para sermos felizes,para amar,viver.Passamos a ter uma tremenda vontade de viver e deixar viver. Um véu se descortina e percebemos como tudo na vida é pueril, passageiro e sem necessidade real. Que só os sentimentos é que irão nos acompanhar para a outra vida e que só o amor que tivermos um pelos outros nos farão verdadeiramente felizes. Eu aprendi isso quando estava morrendo e agora retenho esse ensinamento durante este tempo que me resta nessa vida.  

Maura Nelle

”É precisio Amar as pessoas como se não houvese amanhã"
  (Da música Pais e Filhos de Renato Russo)




Um comentário:

  1. Obrigado pelo texto. Obrigado pela música. O dia da gente fica sempre melhor com a presença de vocês.

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Paz e Bem!
Maura Nelle