Havia uma brisa de início bem suave...
O sol derramava seus últimos estertores de calor sobre mim, mas ainda iluminava
o mar até o mais longe onde a visão podia alcançar. E bem baixinho, quase
sumindo pelos ruídos do mar, havia uma música que me envolvia toda, me levando
a um tempo fora de todo o tempo. Um tempo em que eu era outra pessoa. A música
tem o poder de nos reportar, até mesmo ao que nunca existiu... Ou que só se
concretizou em nossa imaginação. Mas lá estava eu! E esse lugar, talvez dentro
de mim, bem fundo, fundo como as profundezas do oceano mais azul do globo. Não
sei se esse lugar de fato existe... Profundidades costumam ser escuras... E, no
entanto eu me sentia flutuando em uma lagoa tão plenamente azul, clara e límpida. Era linda!Era o meu interior. Já
fui assim. Um dia ou nunca antes. Mas ali, naquele momento, naquele lugar,
assim eu me sentia e assim eu estava. Eu podia.
Inesperadamente acordei desse
devaneio com respingos fortes sobre minha face. O sol já havia partido de todo.
O vento não era mais uma brisa, tinha ímpetos de ventania, prenuncio de
tempestade. A música era outra. Um samba agitado, ali intrometido por um
capricho da imperfeição que rotula tudo o que pode ou não: nada é perfeito. O
vento era o sudoeste, aquele vento que desfaz as brisas e constrói impressões
de tempestade, desfazendo planos, espantando, escorraçando as boas intenções de
um passeio em paz. O manto escuro da noite já envolvia tudo e não conseguia ver
estrelas, nem ouvi-las como Bilac. Foi quando pensei em estrelas que tive medo
de estar perdida. Estava sozinha, com quase nenhuma roupa e sem os óculos que
insistiam em sumir por aí.
Meu barco era um bote,
resistente, mas somente um bote e não havia nele a menor estrutura para que eu
tivesse ido tanto, que esqueci de voltar.Estava longe da costa, o mar agitado,
o céu escuro, sem sinais de ajuda.Eu com
frio e o estômago começava a sentir
fome. Não era eu, apenas ele. Porque eu insistia em uma mesura única, acreditar estar no controle. Mas era fato, não
estava. Enquanto tentava pensar, o sudoeste virou tempestade e me percebi
jogada de um lado para o outro daquelas quinas infláveis. Havia muita água
dentro do bote e eu não conseguia me segurar em nada. Tentando me equilibrar,
fui à extremidade do bote e puxei a corda para dar partida no motor. Estar em
movimento me faria sentir melhor do que continuar parada esperando a certa morte
por vir. Após três desesperadas tentativas, consegui, mas apenas para piorar
tanto as coisas: bati logo em algumas pedras e o bote furou...
Por um tempo em que não saberia
dizer o quanto durou, estive desacordada. Ao abrir os olhos, o sol já ia alto.
Havia uma ave meio depenada bicando a minha barriga, creio ter sido por isso
que acordei. Reparando a situação a minha volta, percebi que o bote não estava ali,
nem vestígios dele eu vi. Eu estava em uma pedra bem grande, como uma ilha no
meio do nada. Meus lábios ressecados já principiavam a rachar. Minha boca extremamente
seca. Esses sintomas indicavam que estava por horas adormecida sob o sol. O mar
estava calmo e não havia viva alma por perto. Notei as roupas sujas de sangue,
procurei por algum ponto de dor. Minha cabeça estava dolorida, o cabelo
embolado ao sangue já seco e grosso. Um grande corte, uma enorme dor de cabeça.
Comecei a lamentar a vida: quando tudo parece estar ruim, eis que vem algo novo
e fica pior ainda.
Mas o meu cínico otimismo não
seria estragado por tão pouco e estava absolutamente convencida que iria logo,
logo aparecer alguém e me tiraria daquela montanha quase que totalmente submersa
no mar. Meu corpo estava muito dolorido e me sentia meio zonza, não percebendo
se de fome ou da pancada e corte na cabeça. Sentei-me com as mãos envolvendo os
joelhos, pensando estar fazendo a única coisa que resolveria parte da situação.
Iria tentar poupar forças e relaxar o máximo que desse. Após um bocado de
horas, avistei algumas barbatanas rodeando a pedra e logo entendi que eram
tubarões. O sol sobre a minha cabeça já me levava à sensação de delírio. Pensei
em molhar a saída de praia e colocar sobre a cabeça e ombros que ardiam
imensamente, mas a presença dos terríveis peixes quase me paralisava. E fiquei
imóvel no mais alto da pedra. Um pouco mais adiante nas horas, começou
novamente a escurecer e meu medo virou pranto e já estava em pânico, chorava ,
gritava , xingava e brigava com Deus: não era justo!Eu não queria morrer, não assim,
longe de todos, sem ninguém saber onde estava.
Comecei a tremer de frio e febre.
Agora o delírio invadia todo o meu corpo em dimensões inenarráveis. E eu era só
uma princesa presa na torre, gritando desesperadamente por socorro. Mas ninguém
aparecia e lamentei que nem mesmo nos delírios, os príncipes deixassem de ignorar
as princesas. Será que só havia sapos no mundo? Eu chorava, sofria e me
arrependia da estupidez feita. O sono da febre trouxe pesadelos e acordei
ouvindo vozes que na verdade nunca estiveram por lá.Mais tarde vozes alegres de crianças correndo,
brincando, vozes em forma de preces, que começaram baixinho e depois foram
aumentando o som como uma sinfonia tocando o bolero de Ravel. Quando acordei,
não conseguia falar, gritar. Estava muda. Minha voz foi embora de mim. Voltei a
dormir. Com o dia veio o sol novamente e eu nem aguentei abrir os olhos. Estava
morrendo. Não conseguia falar nada, não mexia nem um dedo e senti dificuldades para
respirar. Creio ter desmaiado.
Acordei não sei quando e nem
onde. Mas estava me sentindo muito confortável. Mãos ásperas acariciavam meus cabelos.
Sentia um cheiro de café e tudo ali era muito fresco, entrava uma brisa leve
vinda de várias direções e a curiosidade de saber como era o céu, me fez abrir
os olhos. Não era o céu, ao menos não aquele que inicialmente pensei. Mas era o
céu, sem dúvida alguma. As mãos eram de uma senhora muito meiga e carinhosa.
Estava na casa dela em uma vila de pescadores. Estava salva. E já estava ali fazia
três dias. Como era bom estar viva. Antes da febre e do delírio, lembro que
pedi mais uma chance e nem fora para continuar a minha busca incessante por
realizações pessoais que sempre sonhei, mas foi para dizer para algumas pessoas
o quanto eu as amava e lamentava a minha estupidez em tentar afastá-las da
minha vida. Havia acontecido!E agora eu poderia voltar para casa e sorrir sem
fingimentos, sem o sorriso que esperavam que eu desse. Podia ser eu mesma sem
culpas, porque agora, estava realmente querendo sorrir, querendo viver. Já
havia feito tanta gente infeliz com o meu descaso por mim mesma. Principalmente
aqueles que mais me amavam.
Voltei para casa, para o
trabalho, para as pessoas que não me suportavam e também para aquelas que me
amavam. Voltei também para aquelas pessoas que precisam de mim e das quais eu
nunca mais pensaria me afastar. Faria tudo para amá-las como mereciam. As
outras , as que não se importavam, tentaria ao menos provar, que eu estava
disposta a abrir espaço em minha vida. Quem sabe seria um começo de
redescobertas daqueles relacionamentos que um dia tinham sido tão bons. Então
eu voltei, mas do que para todos os outros, voltei para mim. Peguei a vida de
volta.
Quando chegamos tão perto da
morte que só a pré-morte nos pode devolver a vida, nos deparamos com o insondável
de nós mesmos. Nos deparamos com o que
mais odiamos em nós e paramos de dar desculpas do porque não fazemos o que precisa ser feito para sermos
felizes,para amar,viver.Passamos
a ter uma tremenda vontade de viver e deixar viver. Um véu se descortina e
percebemos como tudo na vida é pueril, passageiro e sem necessidade real. Que
só os sentimentos é que irão nos acompanhar para a outra vida e que só o amor
que tivermos um pelos outros nos farão verdadeiramente felizes. Eu aprendi isso
quando estava morrendo e agora retenho esse ensinamento durante este tempo que
me resta nessa vida.
Maura Nelle
”É precisio Amar as pessoas como se não houvese amanhã"
(Da música Pais e Filhos de Renato Russo)
Maura Nelle
”É precisio Amar as pessoas como se não houvese amanhã"
(Da música Pais e Filhos de Renato Russo)
Obrigado pelo texto. Obrigado pela música. O dia da gente fica sempre melhor com a presença de vocês.
ResponderExcluir