Estávamos então em meados de 1978 e o inverno
em Petrópolis estava bem mais forte que em anos anteriores. Os casacos mais pesados,
tentando buscar equilíbrio entre a moda e o conforto e todos sem exceção usando
gorros ou toucas para aquecer a cabeça e as orelhas. Nem mesmo se ouvia a
algazarra das crianças brincando nas calçadas em frente suas casas. E quando ao
início da tarde via-se o sol do outro lado das janelas, era como ver a vida
acontecendo. Todos saiam para suas varandas ou iam cuidar dos jardins ou simplesmente
dar um passeio nas ruas. Era tão bom sentir aqueles raios de vida sobre o rosto.
Era a hora em que o sol estava mais quente e nos dava a todos, vontade de sorrir.
Eram em horas assim que minhas lembranças divagavam entre as diferenças de
algumas vidas ligadas através de afetos. Nessas ocasiões sempre me lembrava de
Geórgia. Tão longe de mim. Uma vida tão distinta que era difícil até imaginar
como deveria ser o que ela vivia naquele exato momento.
Na solidão de minha jovem vida eu
preservava algumas doces e amargas recordações. Foram tristezas e
alegrias. Mas certamente nada tão duradouro quanto a saudade. Aos cinco anos já
sabia ler e entre os presentes que eu ganhei meu pai deu-me cartas que minha
mãe havia escrito durante todos os anos até meu quinto aniversário. Ele esteve
a meu lado em todas as cartas que li. Aquele exercício de amor e agonia durou
mais ou menos um ano. Eram muitas cartas, e ele nunca deixava que passasse para
a próxima enquanto não conversávamos sobre o que estava pensando ou
sobre aquilo que não entendia bem. A meu modo, entendi algumas das situações
que sempre indagava por estranhar a ausência de minha mãe. Entendi que ao se
separarem cada um ficou com uma parte dos bens, seu tesouro. Cada um seguiu seu
caminho, levando uma das filhas, mudando para sempre caminhos que foram
forjados na mesma pegada, mas que enveredaram no lamento da distância. Caminhos
que só voltariam a se cruzar muitos anos adiante.
Dez anos depois da primeira carta e muitas e muitas outras cartas, vinda de um daqueles passeios
que eu adorava fazer nas tardes de sol, cheguei em casa e tagarela, fui logo falando das coisas que havia visto na rua, de quem
havia encontrado e por fim de tudo o que tinha gostado ou não. Éramos assim,
falávamos tudo um com o outro. Naquela tarde encontrei meu pai de pé, apoiado na porta da cozinha... Uma expressão quase aflita de quem não sabia o
que fazer. Sem dizer palavra alguma esticou a mão e entregou-me um envelope. Fiquei
olhando para ele e a carta... Depois de um instante peguei-a de sua mão e fui
direto para meu quarto. Sabia que tinha que estar só. Nem mesmo na frente de
meu pai gostava de mostrar quão sensível e frágil eu ainda me sentia pelas duas
maiores perdas de minha vida. Aos 15 anos era bem mais desenvolvida intelectualmente
que a maioria de minhas amigas de então, porém, aquela tristeza interior que
ninguém notava, mas fazia com que sentisse sempre a falta de algo em
mim, como um braço, um membro do qual naturalmente era parte da minha vida,
estava cada vez mais persistente. Fazendo cada vez mais falta.E sabia que a carta era sobre ela.
Lembro-me ainda hoje que somente
depois de umas duas horas consegui sair do quarto. Havia chorado tudo e mais um
pouco, mas estava ansiosa demais para pensar nos porquês. Chamei meu pai várias
vezes e só fui encontrá-lo lá perto do portão, na saída de casa. Estava ali,
como quem pretendia tomar a decisão ente ir e ficar, mas por fim, acabou não
indo para o trabalho na confeitaria e eu o encontrei assim, sem ainda saber bem o que fazer ou dizer. Quando
me viu, abraçou-me forte. Nesse momento pude perceber que o que ele sentia era
muito parecido com aquilo que ia dentro de mim. Entendi que nós dois estávamos
com medo, mas estávamos ansiosos pela chegada de Geórgia, minha irmã gêmea. Uma
semana passaria rápido ou talvez se arrastasse por dentro de nós. Mas haviam
muitas coisas a serem feitas e faríamos tudo para recebê-la o melhor possível. Minha
irmã dormiria em meu quarto, nem dormiríamos a noite tal nossas conversas e a
vontade de ficarmos juntas. Tudo seria maravilhoso, mesmo que nem todo fosse
perfeito.
Alguns dias depois meu pai e eu
descíamos a serra em direção a capital. Ela chegaria no vôo das 8 horas da manhã e quando desembarcasse já
estaríamos lá .A viagem fora tranquila, não choveu o que nos garantiu poder descer com maior rapidez.Chegamos faltavam quinze minutos para as sete da
manhã.Os vôos estava um pouco atrasados , mas não muito e pouco depois das oito, estávamos avistando
o vôo que trazia minha irmã
da Noruega com apenas uma pequena escala em
Portugal, para o Brasil taxiando na pista.Nervosa,tentava localiza-la. Era como
fotografar cada rosto avistado na
esperança de vê-la antes que ela pudesse nos
encontrar.Mas quando assim o foi,
parecia que olhava um espelho.Sabia que éramos gêmeas idênticas , mas ao vê-la,
nem sei descrever o que senti.Era minha irmã aquela outra parte de mim.E não tirei mais os olhos
dela até que ficamos frente a frente.Sem dizer nada, nos abraçamos e choramos
muito sem nos importar com quem fosse
nos ver assim.
Uma semana havia se passado e as
saudades pareciam nunca passar. Tínhamos cada vez mais assuntos e ríamos de
tudo, cantávamos e tagarelávamos o tempo todo. Meu pai se esmerou na cozinha.
Comemos coisas deliciosas. Fizemos os três, tantas coisas que nunca pensamos em fazer a dois...
Foi maravilhoso para todos nós. Em todos aqueles anos, em cada uma das cartas trocadas,
não conseguimos ter a real dimensão do que era ter uma à outra.Do que era ser uma família.Naqueles dias nós conseguimos
vislumbrar isso.E foi um desejo profundo de nós duas que aquela família pudesse
ser completa novamente.Nunca estivemos
tão felizes.E no meio da visita de
Geórgia, recebi uma nova carta de minha mãe me convidando para ir a Noruega para também estar reunida com
ela e minha irmã durante uns dias ao menos.Meu pai disse que já sabia e claro,
concordava.Só poderia ir nas férias do início do próximo ano.E por isso nos sentimos
gratas e felizes com a esperança de um reencontro mesmo ainda estando juntas.
Os dias que se seguiram até o fim
daquelas férias foram mágicos. Não houve mais lágrimas. Tudo foi de uma
felicidade simples e suave. Sentávamos nos degraus da escada da varanda
descascando maçãs para uma futura torta que meu pai iria fazer. Ou só para ver
a rua cheia de gente se deliciando sob o sol do inverno e as vezes também passeávamos nas
ruas cercada da curiosidade de quem costumava ver somente uma Luiza.E sorríamos pela confusão causada e
saíamos sem querer dizer de nós.Apenas
sorríamos educadas.Tivemos varias aulas de culinária com o chef Bartoud, mas conhecido como o chef da confeitaria D’amour, nosso pai.Fomos ao cinema algumas vezes,e pela
primeira vez fomos juntas a uma
danceteria.Meu pai ficou na porta nos esperando.O que achamos um absurdo na época, porque a danceteria ficava a uma quadra da nossa
rua.Nessa noite a penúltima noite em que dormiríamos juntas, nos divertimos
muito.Conhecemos dois irmãos também gêmeos
que dançavam mais que ‘John Travolta’.Trocamos telefones e na despedida daquela noite incrível, demos cada uma de nós nosso primeiro
beijo no auge dourado de nossa adolescência. E lembro que nos pareceu algo de
maravilhoso trocar nosso primeiro beijo na mesma noite. Voltamos para casa
rindo a toa... E papai não notou nada de diferente em nós. Porque desde que nos
encontramos, vivíamos assim, como num estado perpétuo de felicidade, que
apaixona e faz feliz.
( Continua ).
Lindo. Emocionante. E fico esperando o próximo capítulo.
ResponderExcluirOlá Beatriz, bom dia! Fico feliz que tenha gostado do conto. A continuação vem no próximo sábado, dia em que posto contos. Aproveitando deixa eu te dizer como sigo e separo os assuntos da semana: começando por domingo, sempre ponho alguma oração, porque não podemos deixar Deus de lado em nenhum momento de nossas vidas.E sempre temos muito a agradecer. Ás segundas gosto de vir mostrar alguma das poesias que mais gosto. Às terças pretendo falar doravante sobre atualidades.Na quarta, já se consagrou aquela receitinha básica que tem feito sucesso, rs...às quintas virei mostrar algo diferente, inusitado ou mesmo exótico, sobre todo e qualquer assunto, pare a semana que vai entrar, falarei sobre alguns tipos de sitiam.Às sextas pretendo dizer e falar sobre artesanato que é uma das minhas grandes paixões.E sempre aos sábados, meus contos. E estou sempre aberta à sugestões dos amigos para algo novo no blog que foi feito com muito carinhos para os queridos leitores.
ResponderExcluirUm beijo e um maravilhoso sábado.
Maura
Tu escreves muito bem e nos deixa curiosa para a continuação, já vi que vem no próximo sábado! beijos,lindo o teu comentário por lá! chica
ResponderExcluirMaura, é minha primeira vez aqui em seu blogue, chamou-me a atenção um comentário que deixou no blogue da Chica acerca dos porcos espinhos e pensei: Preciso conhecer esta blogueira, rs, e cá estou, já li a "programação" do blogue acima e sou seu seguidor.
ResponderExcluirEste seu conto, de algum modo, acabei por me identificar, visto que tenho duas famílias, no entanto, nunca senti este peso da separação, pois meus pais vivem em Estados e não países diferentes.
Vou acompanhá-la a partir de agora.
Abraço e bom fim de semana.
ESCRITOS LISÉRGICOS...
Que fofo, adorei!!!
ResponderExcluirComo sempre seu talento me encanta, e faz sonhar!!!
Sempre que leio seus textos tenho a gostosa sensação de mergulhar na estória/história...
Quando afinal nos brindará com livro de sua inteira autoria?!
Mal posso esperar pelo desfecho, parabéns por seu dom!!
Beijinho,
Anna